13 de set. de 2024

A FÉ E O FUZIL

 fichamento do livro: 

A FÉ E O FUZIL

Bruno Paes Manso

Todavia 2023

 

Em 1994, Marcelinho abandonou o crime porque aceitou jesus

 

Entrar em contato com essa religiosidade das periferias paulistas me deu acesso a outro mundo, cheio de verdades e normas bem diferentes das minhas

 

Antes dessas imersões, eu via esses grupos com um viés classista, repleto dos preconceitos típicos de quem observa a cena de uma distância segura

 

Caberia aos jornalistas denunciar a malandragem daqueles que enriqueciam às custas da ingenuidade alheia

 

“nunca matei nenhum inocente” era uma frase que se repetia

 

Se está bebendo com gente ruim, coisa boa não pode ser, explicou um dos entrevistados

 

Um olhar torto pode ser interpretado por quem o recebe como um desafio mortal

 

A ampla maioria da população de bairros conflagrados cabia o compromisso de manter silêncio e não denunciar ninguém à polícia

 

Se armavam e matavam uns aos outros na vã tentativa de sobreviver e assumir o controle informal do território em que moravam

 

Matar ou morrer era a consequência de terem escolhido a vida louca, o destino dos bichos soltos que não aceitavam ser enjaulados pelas ordens injustas do sistema

 

Metanoia = mudança essencial de pensamento ou de caráter, transformação espiritual

 

Representa mudança de consciência e de comportamento que não acontece por ameaça de punição, nem por mera pressão social, mas por convicção pessoal, em decorrência de uma nova crença que faz o sujeito passar a enxergar o mundo de outra forma e a agir conforme ela

 

Eventos mágicos: passei a considerá-los licenças poéticas que pareciam importantes, talvez, para convencer a si próprio

 

Essas fantásticas chamavam a atenção pela capacidade de transformar situações de forma efetiva

 

O perdão servia para anistiar os pecados acumulados, aliviando assim a consciência e fortalecendo o amor-próprio

 

Tudo depende de uma decisão-chave do convertido: arrepender-se dos erros passados, deixar para trás a vida de pecado e seguir em frente ao lado de Jesus

 

Uma senhora que tinha parado de fumar, narrava dificuldades para largar o vício, pedindo conselhos. Ele orou por ela, via telefone. Ao final, disse para ela comer uma balinha e repetir: “O sangue de Cristo tem poder” toda vez que a vontade aparecesse

 

Bastava crer para ver o portal se abrir

 

O crente ganhava passaporte para um novo mundo que direcionava suas escolhas, dava uma missão transcendente e preenchia o vazio da vida

 

Acreditar, contudo, não é algo automático

 

Mesmo quando queremos, muitas vezes simplesmente não conseguimos

 

Na metanoia, a pessoa renasce e torna a viver uma encarnação no mesmo corpo, sem precisar morrer

 

Em 1981, as periferias ainda começavam a se urbanizar, sobravam abusos, covardia, medo e a sensação de abandono e insegurança nos bairros mais pobres

 

Parecia mais rápido eliminar as ameaças cotidianas do que se mobilizar para cobrar o funcionamento de um Estado ausente e ineficaz

 

Policiais militares começaram a matar achando que, assim, reduziriam o crime. Não conseguiram. Na verdade, disseminaram mais violência

 

Mandava os suspeitos para a delegacia de manhã e, à noite, já os encontrava na rua. Perguntava como tinham saído: eles diziam para ele ir “buscar sua parte do dinheiro com o delegado”

 

A história de Pereira, assim como a de outros ex-policiais matadores que se convertiam, cortininha certa ironia. Muitos haviam se tornado exterminadores por acreditarem que bandidos não têm salvação, que são essencialmente ruins, malvados, sem chance de recuperação. Por isso, deveriam ser eliminados em vez de presos. Contudo, quando os próprios policiais matadores se transformavam, passavam a acreditar na possibilidade de mudança, a advogar que todos devem ter chances de se transformar. Era como se, em um passe de mágica, um dos grandes tabus da humanidade, que eles quebravam sem nenhuma crise de consciência, passasse a fazer sentido: um homem não pode querere assumir o papel de Deus sobre a vida e a morte de outros seres humanos

 

Não cabe a nenhum de nós julgar o próximo

 

A modernidade e a urbanização carregam um passado de escravidão e de violência que nos assombrará por muito tempo

 

Com a vida no campo também ficaram para trás os laços familiares e de vizinhança, a relação com à terra

 

A vida nas cidades não permite um respiro sequer

 

Os três sons que, segundo filósofos de boteco, inspiram os homens ao longo da vida: o tilintar das moedas, o alarido das palmas e o gemido das mulheres

 

As pessoas confundem estar feliz com ser feliz

 

Essas transformações dependiam da capacidade das pessoas de acreditar cegamente na verdade sagrada: elas se libertavam da identidade que as fazia sofrer, mas se aprisionaram em outra

 

Mas a chegada dos pentecostais transformou o debate, que passou a girar em torno das pautas de costumes que, em tese, numa república democrática, deveriam ficar restritas ao universo privado

 

A eleição de Marcelo Crivella foi um primeiro sinal de alerta

 

O pentecostalismo se misturava com o crime e a milícia

 

Independentemente das cores das quadrilhas, com frequência crime e religião precisam interagir

 

Não abandonou sua fé, dando um jeito de adaptá-la à vida no crime

 

Durante um bom tempo a ligação entre a religião e o crime passou despercebida

 

Começou a perceber a simbiose entre a fé e o crime nas pichações bíblicas nos muros

 

“traficrentes”: um dos apelidos que receberam no Rio

 

Depois do domínio da comunidade, uma carta-manual foi distribuída aos moradores para anunciar a troca de comando, contendo as diretrizes daqueles que chegavam para governar “em nome de Deus”

 

Tomaram medidas voltadas para melhorar o cotidiano dos moradores e investiram em pavimentação e coleta de lixo, além de construírem uma ponte para ligar as comunidades, obra que a prefeitura adiava havia anos. A organização chegou até a prestar contas, revelando para a população quanto tinha sido gasto na obra

 

Em 2020, chegaram a instalar uma barraquinha de cannabis dentro da estação de trem, também usando luz neon para anunciar o comércio

 

Traficantes e milicianos exerciam o controle armado de mais de 75% dos territórios da região metropolitana

 

A doutrina tem forte conotação política

 

Quando se enxerga o diabo à solta, como responsável por tudo que há de ruim, a mensagem conflituosa acaba se sobressaindo ao espírito da comunhão e do amor ao próximo

 

A guerra santa podia servir para armar os espíritos e acirrar os conflitos, servindo para demonizar o próximo, induzir o crente ao ódio e à violência

 

Passou a chamar atenção em debates ecumênicos para os riscos de essas crenças serem usadas para fins políticos, com o objetivo de manipular fiéis pelo ódio e assim produzir intolerância

 

Para conseguir obediência, era preciso forjar o discurso da luta do bem contra o mal, associando o demônio ao grupo adversário, construindo uma causa para a luta política

 

Um senso comum associa violência com a produção de ordem

 

As milícias se fortalecem com o descontrole das polícias e se aproveitam da pregação do pentecostalismo punitivista tolerante à violência fardada

 

No Congresso Nacional, deputados da bancada da bala passaram a andar de mãos dadas com os representantes da bancada da bíblia, todos concentrados nos mesmos partidos do centrão

 

Os pentecostais chegavam à política com o espírito armado, estimulados por lideranças que bradavam a fúria de um Deus vingativo. O Jesus fraterno e pacifista havia sido silenciado e cancelado

 

Bolsonaro: um dos políticos mais infames da história brasileira

 

O pentecostalismo alcança pessoas de diferentes classes, raças, gêneros e idades. Alguns grupos, porém, estão mais bem representados entre os fiéis

 

44% dos evangélicos foram católicos antes de se converter

 

65% tinham o costume de ir pelo menos duas vezes por semana aos cultos

 

A nova crença, além de mudar a consciência, cria uma nova rotina e comportamentos que permitem a ampliação de laços e a costura de uma rede de contatos e apoios mais forte

 

Quais os elementos mais atraentes para o consumidor das crenças religiosas?

 

Como elas surgiram e se espalhavam?

 

A conexão com o extremismo levaria muitos crentes a acampar em frente aos quartéis e a marchar contra as instituições

 

A cultura que reavivou o espírito dos golpistas era gospel, com seus louvores, hinos e orações

 

Qual o sentido da vida?

 

Os dogmas passaram a ser usados para manipulara e estigmatizar políticas públicas e seus defensores, interditando debates importantes, atacando a ciência e a objetividade

 

Até pregação armamentista ganhou respaldo nos textos sagrados

 

Muitas igrejas tinham se afastado da verdadeira mensagem de Jesus e usavam o CNPJ apenas para ganhar dinheiro dos fiéis

 

As grandes cidades eram imãs poderosos, capazes de atrair multidões. São Paulo e Rio significavam miragens, armadilhas, ilusões

 

Governo paulista financiou a vinda de trabalhadores de fora, influenciado pelas ideias eugenistas que pregavam o branqueamento da população

 

O eixo de desenvolvimento geográfico do Brasil, que durante a colônia estava no Norte e no Nordeste, passou da parte de cima do mapa para a parte de baixo

 

Sonho de criar uma coletividade que contemplasse o convívio das diferenças perdurou ao longo do século. A realidade, contudo, foi de intolerância e de conflitos entre dois mundos que passaram a conviver nas metrópoles

 

Com o passar do tempo, duas soluções foram adotadas para organizar a vida caótica das cidades: fé e fuzil

 

A cor da pele era um elemento importante na construção do estigma, assim como a baixa educação formal

 

Outros caminhos para a vida estavam irrompendo e prometiam superação. Bastava comprar um lugar no pau de arara e enfrentar as centenas de quilômetros que separavam o campo das cidades do Sul e Sudeste do Brasil. Surgia uma janela para escapar da jaula que aprisionava os moradores pobres da zona rural a um futuro fadado a ser miserável e violento

 

O rádio e a TV proporcionariam outras maneiras de sentir e compreender o país, levando a realidade e a identidade urbana, assim como os desejos do mercado de consumo para os rincões do Brasil

 

O poder econômico e o status social passaram a ser medidos pelo poder de compra

 

Mesmo numa casinha isolada da zona rural, os moradores passaram a conhecer outras possibilidades de vida e a sonhar com elas

 

Tanto o avanço dos evangélicos pentecostais como o crescimento da violência e o surgimento das facções criminosas de base prisional são consequências das ondas desse novo Brasil urbano

 

O canadense Robert McAlister, da Igreja Nova Vida, começou no Brasil, em 1960, a valorizar o dinheiro nas pregações e a usar o rádio e a TV para divulgar suas mensagens

 

Veio a ideia de que o Brasil não progredia porque era dominado pelo mal, representado pelas entidades da religiosidade indígena e africana.

 

Segundo denunciava Robert, elas se tornaram dominantes em razão da condescendência da igreja católica no Brasil

 

Eram os primeiros disparos de uma batalha espiritual para exorcizar dos brasileiros o espírito do atraso e colocar em seu lugar uma alma moderna e disciplinada

 

Pentecostalismo: estilo de pregação se manifestou pela primeira vez em 1996, numa igreja da comunidade afro-americana de Los Angeles. Era uma alternativa à frieza e ao intelectualismo do protestantismo histórico

 

Foram treze balas, quando uma só bastava, o resto era vontade de matar, prepotência

 

Entravam em cena os esquadrões da morte

 

Nas sociedades democráticas, as polícias funcionam como o braço armado do Estado. São usadas para preservar direitos e garantir a vigência de um contrato coletivo que pretende promover solidariedade. A polícia e a justiça servem para preservar a paz interna, não para promover a guerra

 

As tensões existiam desde que a cidade começou a crescer

 

Do começo dos anos 1910 até os 1960, os homicídios rondavam em torno de cinco casos por 100 mil habitantes, o que era mais do que em países ricos, mas nada comparável ao que aconteceria no futuro

 

Os grupos de extermínio mais bem estruturados surgiram no RJ

 

O desejo de vingança e a intenção de ameaçar outros que desafiassem a polícia seria um combustível poderoso para a prática homicida

 

A tolerância da sociedade para com os assassinatos cometidos pela polícia empurrou muitos policiais para a carreira do crime

 

Em 1965, os policiais criaram uma irmandade formada por pessoas ligadas a polícia, governo, imprensa, legislativo, judiciado e membros da elite em geral: SCUDERIE LE COCQ

 

Assassinos não viam riscos de punição

 

O plágio dos métodos era explícito. Enquanto no Rio o Esquadrão tinha um relações-públicas apelidado de “rosa vermelha”, que avisava os jornalistas onde estavam os “presuntos”, em São Paulo o cargo foi assumido por um tal de “lírio branco”

 

Em 1974, os policiais voltariam suas armas e técnicas para a guerra cotidiana contra o crime nas cidades, caracterizado pelo excesso de violência e pela ausência de inteligência e estratégia

 

As polícias e as instituições de segurança haviam aprendido a dissimular seus atos de violência cometidos na democracia: os casos eram oficialmente registrados como legítima defesa sob a alegação de que a vítima havia disparado antes de morrer

 

O ápice do descontrole ocorreu em 1992 quando a polícia paulista matou 1.470 pessoas (Carandiru)

 

O espírito beligerante ajudou a flexibilizar o controle da violência nas corporações policiais brasileiras, que passaram a liderar o ranking das polícias mais letais do mundo, e desviou o rumou dos que ingressavam nas polícias com espírito público, que acabavam seduzidos por ideias tortas de fazer justiça com as próprias mãos

 

Teologia da Libertação defendia a organização política dos pobres para tornarem-se agentes transformadores de seu próprio destino

 

Cristo dizia: Viva a partilha. São palavras de incitação à ação concreta, em prol da luta contra as injustiças. Jesus não orientava as pessoas a se conformarem e apenas rezarem; elas deviam brigar pelos seus direitos e pela redução da desigualdade

 

Crente não se mete em política, jargão do período da ditadura militar

 

Grandes terrenos, muitos deles em áreas de mananciais que alagavam com as chuvas de verão, eram fatiados em pequenos lotes por grileiros

 

Moradores compravam suas áreas por meio de contratos de gaveta e construíam suas casas, não raro, em mutirões

 

Depois, iniciavam a pressão para instalação de rede de energia elétrica, água, saneamento básico, regulamentação dos lotes, escolas, postos de saúde e transporte público

 

Compromisso incondicional com os pobres feito por uma parte da igreja de Roma depois dos anos 1960

 

Valores cristãos eram fundamentais para mediar a luta social

 

Era preciso se livrar dos desejos egoístas que o mercado e o capitalismo imprimiam, pois a agressividade competitiva prejudicava a comunhão entre os iguais

 

A liberação dos desejos e a conexão com o próximo dava um sentido à luta por direitos

 

D. Paulo Evaristo Arns vendeu o Palácio Episcopal Pio XII por 5 milhões de dólares, o que permitiu à Igreja comprar cerca de 1.200 terrenos para construir novos núcleos, formando uma base política e popular inigualável, em plena ditadura militar

 

A democracia prometia o aumento da participação popular e um mundo mais justo

 

Quando a educação não é libertadora, pode criar opressores

 

A conivência das autoridades com a violência policial se revelava explícita, incontornável

 

Padres progressistas perderam prestígio e espaço, assim como partidos de esquerda e causas sociais

 

Pentecostais ascenderam à elite econômica e à política nacional

 

O crime se organizou

 

A esperança deu lugar ao cinismo

 

Gente simples, fazendo coisas simples em lugares de pouca importância geram grandes transformações

 

A Lei de Execução Penal tem 204 artigos. Nem metade deles é cumprida

 

Surgiu uma espécie de arquitetura do medo: prédios e condomínios com muros altos, grandes, cercas elétricas; shopping centers; segurança privada

 

Geração coca0cola dos burgueses sem religião, marcados pelo hedonismo e sem culpa por celebrar o prazer

 

O uso recreativo de droga era aceito com naturalidade. Álcool, maconha, cigarro e cocaína sempre foram combustíveis das festas, inspiravam a arte e a música. As raves eram movidas a ácido e ecstasy

 

Hábitos e costumes rurais menosprezados, considerados anacrônicos

 

Era preciso negar a humanidade do outro, o que era mais fácil para quem sentia a própria humanidade negada

 

“bihcos soltos” preferiam viver dez anos a mil em vez de mil anos a dez

 

Os laços entre os moradores eram mais fortes

 

As armas se espalharam, assim como a ousadia dos criminosos

 

O extermínio criara mais violência

 

O mercado de drogas foi um complicador da cena masculina autodestruidora nas cidades

 

Muitos garotos pobres optaram por trocar a perspectiva de uma identidade sem glamour pelas ofertas simbólicas da carreira do crime financiada pelo negócio das drogas

 

O consumo, as armas e os conflitos traziam um propósito a masculinidades que se sentiam desrespeitadas

 

Não esperava encontrar tamanha convicção em pessoas com tantos assassinatos nas costas

 

Eles acreditavam na justeza de seus atos

 

Cometeu o primeiro homicídio para se vingar da morte de seu melhor amigo durante um jogo de futebol de várzea

 

Entender como essas crenças e comportamentos homicidas eram produzidos, como a sociedade e as instituições estimulavam a formação delas

 

Como reverter o quadro?

Será que apenas o sistema de justiça e a punição dos homicidas poderia mudar essa situação?

Seria possível produzir outras verdades, capazes de reprogramar as mentes e mudar os comportamentos homicidas?

Por que as políticas de segurança pública e o sistema de justiça não estavam funcionando?

 

As pequenas igrejas brotavam nas periferias de forma orgânica, e qualquer um que vivesse na quebrada ou no presídio podia assumir o papel de líder religioso, caso tivesse carisma suficiente para abrir uma igreja e arregimentar seguidores

 

Como essas autoridades religiosas estavam inseridas nas comunidades e conheciam os problemas locais, tinham mais habilidade para pensar soluções com seus fiéis e potenciais seguidores

 

Hoje o que você tem nas favelas?

 

Você tem os grupos religiosos, que desenvolvem um “Estado” de bem-estar social improvisado.

 

Hospital, prisão, drogas, vielas, os religiosos vão estar lá

 

O movimento social está dizendo que o mundo está acabando, que o fascismo está tomando conta, uma série de desgraças, mas o pessoal da favela já é doutor em desgraça, ele não precisa ouvir mais essas.

 

Já os pastores estão lá, dizendo para o desgraçado que ele é tudo pra Jesus.

 

Se eu estou numa situação de abandono, eu me agarro

 

Organizações como a CUFA são moldadas pelos valores da era pentecostal, ligados ao empreendedorismo, bem diferente das mobilizações de esquerda para pressionar o governo.

 

As favelas e os bairros pobres brasileiros, segundo a Cufa, mobilizam 117 bilhões de reais em poder de consumo

 

Essa mistura de comunicação de massa com pregação hiperlocal, voltada para soluções do dia a dia e para o mercado, se mostraria uma estratégia vitoriosa entre os pentecostais

 

O movimento era duplo: pelas ondas do rádio e da TV, pela oralidade, os pastores conclamavam a responsabilidade coletiva e a identidade de grupo. Nos territórios, pelo estímulo à leitura da Bíblia, desenvolviam a introspecção e a reflexão individual sobre os próprios desígnios e problemas

 

Os 12,1 mil templos de 1982 se multiplicaram até alcançar a marca de 178.511 em maio de 2022

 

Existia um fenômeno grandioso por trás desse boom empresarial transcendentes dos pentecostais: parte dos migrantes e e de seus descendentes, que durante o processo de urbanização tinha construído suas casas e vidas nas grandes cidades, produziam um novo tipo de discurso que dava sentido para o mundo que habitavam e que lhes permitia consertar os erros passados

 

Pequenas igrejas eram criadas nas quebradas, sintonizadas às mensagens transmitidas pelas grandes denominações via rádio e TV, para reinterpretar a realidade e dar novos significados à miséria cotidiana.

 

Enquanto isso, mitos, regras e valores eram restabelecidos para servir como referência produzindo ordem num ambiente em que o caos estava sempre à espreita

 

Com o passar do tempo, essas referências foram impregnadas por um discurso belicoso que inflamava a busca pela prosperidade e pelo autocontrole em nome do triunfo do bem sobre o mal

 

A intolerância é uma das características da divisão do movimento em centenas de denominações, cada qual com uma interpretação específica da palavra divina

 

Políticos evangélicos foram decisivos para dar mais densidade ao centrão, com o pragmatismo que se tornaria a marca dos pentecostais

 

Eles integravam partidos que apoiavam governos da vez, em troca de vantagens para suas igrejas e grupos

 

Entre 1985 e 1989, o presidente concedeu 632 canais FM e 314 AM, e os deputados da bancada evangélica receberam sete concessões de rádio e duas de TV

 

Entre 2002 e 2008 foram eleitos 332 parlamentares evangélicos, 110 ligados á Assembleia de Deus, 59 à Universal e 55 às igrejas batistas

 

 Em 2003 já chegavam novas regras das prisões de São Paulo: para matar, era preciso apresentar justificativas e ter autorização do PCC

 

Depois de controlar o sistema penitenciário, consolidava seu poder do lado de fora com a ajuda dos telefones celulares

 

Estava sendo construído um novo pacto para regulamentar o comportamento dos criminosos, uma força invisível começava a fazer efeito

 

Em 2001, Diadema: lei de fechamento de bares depois das 23 horas

 

O hip-hop paulista se tornaria o principal canal de comunicação a construir e expor uma forma de masculinidade crítica e engajada que não escondia a raiva que sentia, mas que defendia a necessidade de se manter viva

 

Transformavam ódio em poesia e crítica social assertiva

 

Pela primeira vez a realidade das quebradas estava sendo contada pela perspectiva de quem a vivia

 

O indivíduo deixaria de agir exclusivamente de acordo com suas próprias vontades e objetivos e se sujeitaria aos propósitos do grupo

 

O PCC criou um sistema de comunicação eficiente para disseminar suas leis

 

Crescer nas brechas do sistema era o lema

 

Quanto maior a quantidade de presos, mais crescia o tamanho da massa de manobra à disposição dos chefes e o volume de conexões entre as prisões e as ruas

 

O PCC se inseriu no capitalismo porque conseguia acumular capital e lavar dinheiro

 

Entrando pelas brechas enquanto conectava as diversas pontas da economia ilegal, tornou-se uma máquina de produzir riqueza, ostentação e novos consumidores

 

O crime paulista se profissionalizou e espalhou sua visão empresarial entre seus parceiros

 

Se o dinheiro viesse do crime, mas o ladrão seguisse uma ética mínima convivendo bem com os trabalhadores honestos de seu bairro, evitando a violência quando possível, emprestando dinheiro e empreendendo em negócios legais, as portas do sistema se abririam para ele. Foi o que aconteceu

 

Mais comum, contudo, são as relações esporádicas, isoladas, como o pastor aceitar o dinheiro do crime porque o recurso vai ser usado na luta em defesa do bem

 

Os canais formados dentro das prisões ajudaram o PCC a distribuir drogas e armas de seus esquemas atacadistas para quadrilhas varejistas regionais

 

O aumento na oferta de mercadorias fortaleceu o mercado de drogas em cidades de diversos tamanhos, armou seus participantes e ampliou o capital, que pode ser investido em outros crimes, como os ambientais nas áreas da Amazônia Legal

 

Atraiu pessoas dispostas a arriscar a vida e a liberdade para acumular plaquês de cem e bater de frente com o sistema, e depois reingressar pela porta da frente com dinheiro lavado

 

Forças criminosas milicianas prosperam graças à tolerância social à violência fardada e podem gerar lucros elevados

 

Descontrole policial brasileiro: polícia mais letal do mundo

 

A capacidade de articulação da rede levava o capital do crime a se tornar mais influente na economia

 

Com dinheiro acumulado, a força política do grupo cresceria sem que a sociedade notasse ou compreendesse a direção da caminhada, que seria percorrida pelas sombras, lavando os recursos e posicionando seus participantes como peças decisivas no tabuleiro do poder. Quando menos se esperava, eles já estavam dentro do Estado

 

Gilberto Natalini, em 1976, foi com colegas médicos para Cangaíba, na periferia leste de SP, trabalhar nas CEB e Pastoral da Saúde

 

Os médicos de Cangaíba atuavam em diversas frentes, realizavam tratamentos, incluindo pequenas cirurgias, no fundo das igrejas, que viravam clínicas

 

Também passavam filmes e davam palestras sobre saúde preventiva, instruindo os moradores da região a se organizar e a cobrar dos governos melhorias na rede de saúde pública

 

A participação e a organização popular alcançavam resultados políticos concretos

 

Dessas lutas, surgiu a articulação para a criação de um sistema de saúde integral, universal e público: SUS

 

A organização coletiva e a pressão popular foram os instrumentos usados para impor as pautas prioritárias na agenda política

 

Parlamentos tomados por grupos de interesse que defendam mercado, legal e ilegal, igrejas pentecostais em contínua multiplicação

 

Ninguém mais se interessa pelos temas coletivos, políticas públicas

 

Parlamentares passaram a atuar como lobistas de interesses específicos, em bancadas: da Bíblia, do Boi, da Bala, dos Bancos, do Setor Imobiliário etc

 

O transporte alternativo foi dominado pelas milícias

 

Mediar o diálogo da informalidade com o setor público não é tarefa fácil

 

Tentáculos do PCC surgiram em outros serviços públicos, como saúde, coleta de lixo, prefeituras

 

Táticas das redes sociais e da indignação violenta das massas apropriadas pela extrema direita

 

A filosofia sul-africana UBUNTU serviu de base para um pacto para a reconstrução do país no pós-apartheid

 

É o mesmo princípio da vida em comunhão pregado por Jesus e Buda, mas nunca seguido por seus fiéis

 

Já a pregação do mercado sempre foi obedecida com devoção

 

 

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